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QUANDO O OUTRO


Diz que a pedra, de tanto bater, fura — e o sulco fica, feito marca em couro velho, nunca mais desfeita. Pedra não é areia nem água — não se molda pedra, não se amacia gente.

E sem barulho, nem alarde, feito pedra rachando fundo dentro d'água, veio o primeiro fio de estranheza — atravessando o peito, apertando, engasgando, fazendo nó que não se desfaz. O que o olho vê e o verolha não é o outro mais: é o não-ver.

Será a cegueira virada do avesso? Talvez o regresso, a lembrança puxada, seja só uma correria desesperada pra aquilo que já nem se pode mais ajuntar. O que era firme amoleceu, desmilinguido, e a tua palavra, que era roca de fiar, virou bravata — precisando de disfarce pra poder ser, de ser pra abafar dor.

No Buriti, um alguém, sem querer querendo, largou umas palavras. E a que mais ecoa é aquela que disse da mistura do mundo — que todas as cores remexidas fazem é lodo. Lodo de tinta que nem pinta, nem sabe mais que cor devia ter um coração.

Era bom demais... aquela inocência forte, herdada, que a vida, toda sabida, foi desmanchando e desfazendo. Se somos bichos, e somos, então não se pode chorar o ataque. Que pra se fazer, primeiro é de sobreviver.

O problema é a mistura — o lodo que se fez da tinta. E nós, que sem medo sorríamos os arroubos das artes, hoje no espelho só vemos a figura murchada. Mesmo querendo: o que se rega de água suja, não viceja, não.

E a gente sofre. Sofre de tudo que espera, de tudo que recebe, de tudo que pensa que dá. Sofre do presente que sempre se aguarda. E as dores maiores são aquelas que se criam no escuro, onde o acompanhado se vê sozinho e desúmido.

Descorçoar é isso: olhar com o olho turvo, ver o pretume no outro — um feitio de gente novo: cheio de sombra, cheio de vão, cheio de não-ser, feito assim mesmo. A memória bonita, sussurrada na lonjura da lembrança, parte o barro que ligava os nós. E mesmo que se ajunte caco e se cole com ouro bom, as veredas da felicidade antiga estarão lá, fundas, fundidas, nunca mais inteiras.

E, ainda assim, se caminha. Com o pé ferido, sem saber se o chão que pisa é santo ou pagão. Mesmo sem crer no que vê, nem no que ouve, nem no que sente. Gargalhando de fingido a tristeza de dentro. Que a vida é pros que sabem perder — e, mesmo assim, não param de caminhar.

Porque se o outro se quebra dentro de nós — quebrou. Mas nós — ah, nós! — se soubermos, ainda podemos seguir. De alma meio trincada, sim. Mas viva.

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