Simples o cenário, um pequeno
jardim de inverno japonês, portas de correr e o barulho incessante da chuva na
telha, ritmava com meu silêncio. Eu, Yasuji, último de minha linhagem proibido
de dar cabo a minha própria vida, mesmo que minha família tenha caído em
desgraça. Era muito honrado morrer, e para mim nenhuma honra. Vivo no esqueleto
do que foi um dia uma casa prospera, onde empregados corriam de um lado a
outro, onde todas as tradições eram orgulho, onde praticar o kendo e o arco e
flecha, me dava status de nobreza.
Ainda ouço o murmurar da velha
ama, Yasuji você descende do dragão, você nunca deve se rebaixar, nunca deve desonrar
seu nome, nunca deve esquecer que o sangue que corre em suas veias é divino.
Era tão interessante olhar aquela senhora, que para mim parecia uma tartaruga,
de tão velha que era, e mesmo assim tão ágil. Ecos, é apenas o que me resta,
ecos dos meus passos, ecos dos meus fantasmas. Não conheci minha mãe, o único retrato
que tenho dela é de uma bela jovem vestida com roupa de casamento. Não percebo
meus traços nela, apesar de dizerem que nasci com sua delicadeza de movimentos
e seu bom coração.
Minha mãe, morreu de uma doença
silenciosa e rápida, aprendi a contar os dias bons e ruins que ela tinha, por
nossa cerejeira no meio do quintal. Dizem que a cerejeira é uma planta vampira,
nasce carmim como o sangue que muitas vezes minha mãe sujava o lenço a tossir.
E por fim as flores ficam brancas, como ficou a pele dela quando não acordou.
Meu pai, um homem sempre muito duro e distante de mim, se reclusou ao seu
mundo, quanto mais conseguíamos dinheiro, mais era fácil ele perder. Era no
jogo, no saque, nas gueixas da Rua das Lamparinas vermelhas, e foi em uma
dessas noites, que ele imprudentemente matou o filho do governador da província.
Essas memórias, são apenas uma
introdução, minha mente não habita mais esse tempo. Nunca habitou, eu que
deveria ser, estou tão vazio como essa casa, como essa tragédia banal, a minha
única companhia é a cerejeira e alguns peixes, que dão cor a todo o negro em
que vivo. Tenho sonhado todas as noites com um oceano congelado, eu não sou
Yasuji, sou uma menina de cabelos negros, que enfrenta o frio com os pés
descalças sobre o gelo que é o mar, ela parece não sentir frio, mas eu sinto,
sinto tudo por ela, sinto que algo a modifica, algo a desonrou, talvez? Não,
sei porque sou eu que estou no corpo dela e não compreendo porque ela se afasta
da costa, agora meus peixes a seguem, o que eles querem dizer? Eu acordo desse
sonho repetitivo todas as vezes enquanto sozinho vejo as estações do ano passar
com o desabrochar das flores de cerejeira. Sento e esquento o chá, naquele
ritual sagrado que tantas vezes vi a minha família numerosa fazer. Há apenas
eu, há apenas ela.
Yusuji, eu vejo seu dia-a-dia
quando durmo, entre várias taças de vinho e remédios controlados. A resposta é
realmente essa, só há apenas eu, há apenas você.
(Diário de um sonho continuo)
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